Antevisão: Scarlet Hollow

Scarlet Hollow é um jogo que tem vindo a construir uma base de fãs sólida desde o lançamento do seu primeiro episódio em 2021. Criado pela Black Tabby Games, o estúdio responsável pelo excelente Slay The Princess, Scarlet Hollow posiciona-se como uma experiência de terror sobrenatural centrada numa narrativa forte, personagens bem desenvolvidas e escolhas com verdadeiro impacto. Agora, com a atualização The Roads Untraveled, o jogo recebeu um pequeno relançamento, trazendo melhorias que justificam uma nova visita à misteriosa vila que lhe dá nome. Sendo um projeto em andamento com sete episódios planeados e quatro já disponíveis, a obra já demonstra uma maturidade narrativa e mecânica rara no género das novelas visuais. Scarlet Hollow não se limita a replicar os tropos tradicionais do horror; antes, subverte-os de forma inteligente, criando uma experiência envolvente que recompensa a curiosidade do jogador e o desejo de explorar múltiplos caminhos narrativos. Com um estilo visual distintivo e uma atmosfera carregada de tensão, o jogo destaca-se num género onde muitas vezes reina a previsibilidade. E embora ainda esteja incompleto, é inegável o impacto que já consegue causar.

Jogabilidade

Apesar de ser, no seu núcleo, uma visual novel, Scarlet Hollow aproxima-se de uma estrutura mais próxima de um RPG narrativo. O jogo inicia-se com a escolha de dois entre vários traços de personalidade, como poder falar com animais, força física, inteligência académica ou astúcia de rua. Estes traços não servem apenas como adorno narrativo, mas influenciam diretamente as opções de diálogo disponíveis, os caminhos possíveis e até o tom das interações com os outros personagens. Há também um modo Hardcore que permite escolher três traços, mas bloqueia o uso dos mesmos para evitar consequências, intensificando o peso das decisões. O jogo destaca-se pelo elevado nível de agência concedido ao jogador. As decisões têm impacto real, moldando não só o rumo da história como também a forma como os outros personagens reagem. O exemplo logo no início do jogo, em que se pode interagir de formas muito distintas com um estranho num autocarro, demonstra bem esta liberdade. Cada escolha parece ter um peso e não há sensação de estar a ser empurrado para uma única narrativa predefinida, algo que distingue Scarlet Hollow da maioria das novelas visuais ocidentais. Além disso, o jogo incentiva a múltiplas jogadas. A variedade de escolhas e combinações de traços cria ramos narrativos distintos que alteram profundamente a experiência. Cada nova sessão revela algo novo, não apenas no enredo, mas também na forma como os mesmos eventos podem ser interpretados à luz de diferentes perspetivas.

Mundo e história

A narrativa de Scarlet Hollow começa com o protagonista, de nome escolhido pelo jogador, a caminho da vila titular para assistir ao funeral da tia. Convidado pela enigmática prima Tabitha, rapidamente se percebe que há muito mais por trás do reencontro familiar do que aparenta. A vila é um lugar mergulhado em segredos, maldições e rumores de criaturas sobrenaturais. Desde o primeiro momento, o jogo mergulha o jogador num ambiente denso de mistério, onde cada personagem parece esconder algo e cada rua parece ter uma história por contar.

Apesar da temática sobrenatural, a narrativa mantém-se surpreendentemente ancorada em conflitos humanos e dilemas morais. A história é construída de forma cuidadosa, com revelações bem colocadas e momentos de tensão que não dependem de sustos baratos, mas sim de um crescendo de desconforto psicológico. A forma como os episódios terminam, quase sempre com reviravoltas inesperadas, deixa o jogador ansioso por mais. As personagens são um dos pontos mais fortes da narrativa. Desde Stella, com quem é fácil simpatizar logo nos primeiros momentos, até à distante e complexa Tabitha, cada figura tem camadas a descobrir. O jogo não se limita a apresentar estereótipos; ao contrário, constrói figuras multidimensionais que evoluem e surpreendem. Mesmo ao fim do quarto episódio, muitos continuam envoltos em mistério, o que reforça o desejo de continuar a explorar a vila e as suas histórias.

Grafismo

O estilo artístico de Scarlet Hollow é, tal como em Slay The Princess, uma das suas maiores forças. Os personagens são desenhados com expressividade e detalhe, conseguindo transmitir emoções de forma clara e convincente. Há um equilíbrio notável entre o grotesco e o cativante, algo que se encaixa perfeitamente com o tom da narrativa. Os cenários são ricos em pormenores e contribuem fortemente para a criação de uma atmosfera inquietante. Desde a mansão decadente da família até às minas abandonadas ou os bosques envoltos em névoa, cada local parece ter sido pensado para manter o jogador em constante estado de alerta. O uso de contrastes fortes e sombras pesadas acentua o tom sombrio do jogo sem cair no exagero. É visível o cuidado colocado na direção de arte, tanto no design dos ambientes como na apresentação visual das cenas mais intensas. Tudo contribui para uma estética única, coerente com o tipo de história que está a ser contada, elevando ainda mais a imersão.

Som

Se há uma área onde Scarlet Hollow poderia crescer, é no departamento sonoro. O jogo não tem vozes, o que pode ser compreensível dada a enorme quantidade de texto e as múltiplas ramificações narrativas, mas ainda assim sente-se alguma ausência, sobretudo em momentos de maior carga emocional. A presença de voz poderia acentuar ainda mais a ligação com os personagens e amplificar a tensão em momentos-chave. No entanto, a trilha sonora e os efeitos sonoros cumprem bem o seu papel. A música é discreta, muitas vezes quase impercetível, mas serve para manter a tensão e acentuar a sensação de inquietação constante. Há um uso eficaz do silêncio e dos sons ambientes, como o vento entre as árvores, o ranger da madeira velha ou os ruídos ao longe que nunca se explicam. Essa construção sonora ajuda a criar uma experiência de horror mais subtil e psicológica, focada na antecipação e na sugestão.

Conclusão

Scarlet Hollow é uma das novelas visuais mais impressionantes dos últimos anos. Com uma narrativa inteligente, personagens envolventes, um mundo rico em mistérios e uma apresentação visual memorável, o jogo afirma-se como uma obra obrigatória para os fãs de histórias interativas. A forma como joga com as expetativas do jogador, subvertendo tropos do género de terror, é refrescante e prova da maturidade narrativa da equipa por trás do projeto. Mesmo estando ainda incompleto, os quatro episódios disponíveis oferecem já uma experiência sólida e recheada de conteúdo. A elevada rejogabilidade, motivada pelas escolhas e pelos traços de personagem, assegura que cada sessão pode revelar novos detalhes e situações. A ausência de vozes pode ser apontada como uma falha, mas não chega a comprometer a qualidade geral do jogo. Para quem gostou de Slay The Princess ou procura uma história de terror onde as decisões realmente contam, Scarlet Hollow é uma aposta segura. É uma experiência intensa, misteriosa e surpreendentemente humana, que sabe quando assustar e quando fazer pensar. Resta agora esperar que os episódios finais estejam à altura das promissoras fundações já lançadas.

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